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Envelhecer dói...um texto de Arali Padilha

  • Foto do escritor: Daniela Amaral
    Daniela Amaral
  • há 2 dias
  • 5 min de leitura


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A dor de existir entre quem não sente mais sua falta.

Aos poucos minha existência está se apagando, mas eu ainda estou

aqui, com as dores de um corpo velho, preocupada com as necessidades médicas

que mobilizam os filhos a me ajudarem já que nem ir e vir sozinha eu posso mais.

Não entendo o que me dizem, os médicos falam tão complicado, me sinto tão

perdida diante deles e no meio daquela explicação toda de doença, remédio,

cuidados eu desligo, minha mente vagueia pelo vazio, revisita o passado, tudo foge

ao meu entendimento. Não faço por mal, só não consigo mesmo. E isso vai muito

além de não entender um médico. Não entendo mais a vida.


As pessoas me ignoram. Minha opinião já não importa, sou taxada

de arcaica, retrógrada. Esses dias, enquanto conversava e contava uma história que

vi na TV com o Padre Fábio, percebi que meus filhos olhavam pro nada, pensando

em suas vidas, fingindo que me ouviam. Este mundo de hoje é muito estranho, as

pessoas vivem com a cara no celular, tudo se resume àquele maldito aparelho, que

por sinal é outra armadilha, vira e mexe eu quero conversar e todos estão olhando

pro aparelho em suas mãos, às vezes acho que fazem de propósito com o intuito de

me ignorar mesmo.


Cresci num mundo sem tecnologia. Nos comunicávamos por cartas.

Telefone era raro, só gente rica tinha, mas mesmo assim era mais fácil, discava um

número, conversava, desligava. Pronto. Nunca entendi como funcionava, mas

também não precisava. Era simples.


Agora com o celular é tudo tão complicado, restringiu toda nossa

vida ali e por mais que meus filhos me expliquem não entra na minha cabeça.

Banco, posto de saúde, aplicativo da água, da luz, tudo ali naquele aparelho, sem

contar as tais redes sociais onde as pessoas se expõem, postando fotos e

desabafos.


Sei que facilita a vida, mas não consigo mais aprender tanta coisa, é

um “aperta aqui, clica ali” que no meio de tantos comandos, me perco. Os jovens

ficam irritados com a minha lentidão, ou até mesmo a minha resistência a toda essa

tecnologia, é tão difícil que muitas vezes desisto de tentar.


Nesse emaranhado, quase caí num golpe. Ligaram dizendo ser do

banco, mas por sorte na hora meu neto estava por perto e viu minha reação meio

perdida, sem saber o que fazer e me salvou. Fizeram o maior auê, indignados por

eu ter sido tão burra. Senti alívio por ter alguém por perto na hora, mas a vergonha

que fiquei não cabia em mim, passei um bom tempo afastada deles, tamanho era

meu constrangimento em perceber o quanto eu era frágil.


Me aposentei há alguns anos, mas não por vontade própria, por

mim continuaria trabalhando, porém o corpo já não estava dando conta da rotina

que se tornava pesada para uma mulher que viveu mais que a expectativa de vida

apontada pelo IBGE na virada do século. A incontinência piorara, as dores nos

joelhos e nas costas me castigavam.


Nos últimos tempos as pessoas evitavam me passar qualquer tipo

de trabalho, cada dia que passava mais tempo ocioso eu tinha, quando me oferecia

pra ajudar não aceitavam, tinham que me explicar e com a minha lentidão cognitiva

demorava pra aprender, perguntava várias vezes as mesmas coisas, via no rosto

deles a impaciência, percebia os cochichos pelos cantos, sabia que se reuniam e

nunca me chamavam.


Uma das últimas manhãs que antecedeu minha aposentadoria,

escutei uma das minhas colegas dizer “Os pensamentos da Dona Eulália cheiram a

naftalina”, chorei. Naquele dia pedi pra sair mais cedo, estava magoada, perplexa.

Talvez ela tivesse razão, eu realmente havia parado no tempo. Decidi me

aposentar, o que antes preenchia meus dias vazios agora estava me deprimindo.

A dor da solidão é nauseante. Já não faço parte da vida de

ninguém, já criei meus filhos, que agora criam meus netos, todos tão ocupados com

seus mundos, trabalhos, natação, academia, aula disso, aula daquilo. Nos finais de

semana mal nos vemos, preferem os almoços com seus amigos, com os amigos

dos filhos. Quando sobra um domingo pra visitar a mãe, lá estou eu reclamando de

doenças, das dores que insistem em ficar e indignada com as novas músicas que os


jovens escutam, uma pouca vergonha isso, aquele monte de palavrões que

qualquer um pode ouvir.


Outra coisa que me custa a aceitar são essas mudanças todas que

aparecem na TV. Nasci no ano da guerra, vivi escassez, vivi recessão, vi moedas

que valiam num dia e no outro não serviam pra mais nada, aprendi a entender o

mundo como era, ou como eu achava que era. Mas agora já não sei. Na novela das

oito, todo dia aparece um casal diferente, dois homens se relacionam, de repente

são duas mulheres se beijando. Meu neto mais novo ri dizendo que é normal, mas

isso me causa repulsa. Esses dias ele trouxe o namorado aqui pra eu conhecer, um

menino educado, me chamou de senhora e até tirou a louça do café da mesa,

deixando tudo bem organizadinho na pia, sorri, agradeci, mas não consegui olhar

nos olhos dele. Pro Carlinhos eu fui super descolada, até me abraçou quando foram

embora em agradecimento por ter tratado seu namorado tão bem, como se a minha

aprovação fosse muito importante. Mal sabia ele que aquele abraço me doía mais

que minhas juntas inflamadas.


As novelas trazem muito isso agora, até os negros mudaram na TV,

antes só apareciam nas novelas que falavam sobre escravidão ou quando retratava

os moradores das favelas. Agora estão em todo lugar, são doutores, empresários,

políticos. Meu filho diz que é assim mesmo, que as novelas têm que retratar a

realidade, mas pra mim é só um jeito que acharam pra nos convencer, virar o

mundo de cabeça pra baixo. Rezo pra Deus me ajudar nesse entendimento todo,

mas as vezes acho que Ele também está ocupado demais com essas novidades.

Pra não dizer que minha vida é um tormento completo, uma vez por

mês me permito ir no bingo que tem no salão de festas do bairro e passo um tempo

com pessoas que estão no mesmo barco que eu. São boas companhias. Dona Célia

sempre tem uma fofoca pra me contar, e o Seu Gervásio conta piadas tão ruins que

até eu, ranzinza eu sou, dou risada. A gente conversa sobre os netos, uma conta da

novela caso a outra tenha perdido algum capítulo. Fazemos até competição de

dores e por algumas horas esqueço que a vida é dolorida. Meu filho vive dizendo

que preciso interagir com pessoas iguais a mim, pra tentar me livrar da solidão,

exercitar meu cérebro, então eu vou, é até divertido, mesmo sabendo que não são

amigos de antigamente, mas a gente até que se entende bem.


Meus amigos de antes…ah, meus amigos! A maioria já morreu.

Meus irmãos, os que estão vivos estão piores do que eu, e acabo preferindo ficar

longe, afinal é desgraça atrás de desgraça, ninguém gosta de escutar isso.


Até meus atores favoritos estão morrendo. De repente surge no

jornal a notícia da morte daquele ator bonitão que eu acompanhava nas novelas

desde menina. Tarcísio Meira, Francisco Cuoco, Mário Lago, Nair Bello, todos se

foram, até Silvio Santos já se foi, e eu ainda estou aqui. Chego a pensar que Deus

não me quer. Questiono se sou tão ruim assim que nem Deus nem o Diabo me

querem por perto me deixando aqui, sobrevivendo, esperando lentamente a morte

chegar.



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