Batidas no Vidro...um texto de Cintia Ishizaka
- Daniela Amaral
- há 7 dias
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As batidas chegaram antes dela.
Socos secos no vidro do consultório, urgentes como coração acelerado, ritmados como
quem chama pela vida. Não eram batidas de quem aguarda. Eram pancadas de quem
desaba. Cada uma delas uma sílaba muda gritando: estou aqui, me veja, eu existo, não escolhi minha cor mas escolho não morrer.
Quando abri a porta, a vi curvada. Não curvada de anos - tinha pouco mais de quarenta -, mas curvada de peso. Desse peso que não se mede em quilos, que não aparece em raio-x, que não cabe em diagnóstico. Peso de quem carrega gerações nas costas. Pele da cor do café torrado, mãos que sabem de terra, corpo que entrou apressado trazendo um encaminhamento médico numa mão e o desespero na outra.
Seu nome poderia ser Maria. Ou Tereza. Isolda. Rosalina. Um desses nomes que
atravessam o tempo levando dentro de si a história de tantas. Nomes de mulheres da terra vermelha, do norte que sangra café, de quem planta feijão entre o milho e sabe que da mistura nasce a fartura.
Sentou-se na beirada da cadeira. Como quem não cabe. Como quem não ousa ocupar
espaço. Como quem está pronta para fugir do próprio desamparo. E então, trêmula por
dentro, começou a desaguar:
— Fazem dias que eu choro.
Dias. Não disse " fazem alguns dias" ou "muitos dias". Disse simplesmente: fazem dias. Como se o tempo tivesse se tornado uma massa indistinta de lágrimas.
— Eu só durmo até as três horas da manhã. Aí eu levanto e de joelhos no chão retomo a minha fé. Fé de que um dia isso passará. Que a mão divina, como que um raio, há de me tirar desse sofrimento. Simplesmente porque dele sou filha.
Três da manhã. A hora em que o mundo ainda dorme e os desgraçados acordam. A hora dos joelhos no chão frio. A hora da negociação com Deus. A hora em que ser filha do sofrimento é identidade, herança, destino.
Perguntei de onde vinha. Ela ergueu a cabeça - devagar, de lado, como quem arrisca acreditar - e me olhou nos olhos pela primeira vez. E sorriu. Pela primeira vez desde que entrara, sorriu. E disse, orgulhosa:
— Sou da roça.
Da roça. Nesse da "da roça"; havia terra debaixo das unhas. Havia rio que se encontra com rio. Havia peixe que dá bom de comer e sol que dá bom de sentir. Havia a beleza de ver o pimentão crescer na estufa, o milho abraçado com o café e o feijão, essa trindade de alimento que alimenta o Brasil que depois a cospe fora.
Havia uma cidade de cinco mil habitantes. Pequena o bastante para caber no peito. Grande o bastante para acolher quem foi abandonado.
Porque ela foi abandonada. Pelo marido que a deixou numa casa a catorze quilômetros da cidade, com cinco filhos e nenhuma compra. Catorze quilômetros. A distância entre a fome e a faxina. Entre o desamparo e a dignidade. E ela escolheu a dignidade. Trabalhou em empresa de trezentas pessoas e nunca, nunca teve confusão.
— Mas aqui...
Aqui. A cidade grande. A promessa. A armadilha.
Ela não escolheu sair da roça. Foi empurrada. Foi arrancada. Um bandido ameaçou sua
filha - ia matá-la, jogar no poço, cortada. A violência masculina expulsando mais uma
mulher de sua terra. A migração como ferida. O desenraizamento como sobrevivência.
E na cidade grande - essa que deveria acolher, proteger, incluir - encontrou outra violência.
Mais sofisticada. Mais cotidiana. Mais lenta de matar:
— Aqui sou acusada da minha cor.
Pausa.
— E lá, alguém escolhe a cor que vai nascer?
A pergunta ficou suspensa entre nós. Simples como um soco. Devastadora como a verdade.
Sem resposta porque a resposta é o silêncio constrangido de um país que não se olha no espelho.
— Meu cheiro incomoda com quem eu trabalho.
Cheiro. Ela disse cheiro. Como se corpo negro fedesse por decreto. Como se limpeza não bastasse. Como se acordar às cinco da manhã com dois graus de temperatura, banhar-se no frio que morde a pele, passar talco, vestir-se com cuidado - nada disso bastasse para apagar o pecado de ter nascido negra.
— Logo eu, que levanto às cinco da manhã e me banho. Passo talco. Na mesa não sento não. E a água eu tomo sem tratar, do tanque mesmo.
Ela não senta à mesa. Ela, que acordou antes do sol. Ela, que trabalha sem reclamar. Ela,
que é invisível até incomodar por existir. A 'moça branca e pequena"; que é sua encarregada decidiu: você incomoda. Sua cor incomoda. Seu cheiro incomoda. Você incomoda.
— Foram três anos assim. Mas não consigo mais.
Três anos. Mil e noventa e cinco dias acordando às cinco da manhã para ser acusada de
feder. Mil e noventa e cinco dias não sentando à mesa. Mil e noventa e cinco dias se
fazendo pequena, menor, invisível.
— O dono da casinha onde eu moro me perguntou onde eu estava. Que de mim não se ouvia nem os passos.
Nem os passos.
Ela apagou até os passos. Ela, que vinha da terra onde havia espaço para correr. Ela, que criou sozinha cinco filhos. Ela, que trabalhou sem parar. Apagou os passos para não
incomodar quem a julga pelo crime de existir.
— Eu fico em casa quietinha. Esperando o Natal chegar para voltar para a minha cidade de cinco mil habitantes.
Natal. A festa do nascimento. A festa da volta. A única esperança: regressar. Voltar para
onde os passos podem ecoar. Voltar para onde a cor da pele não é acusação.
Mas antes de sair, ela me contou de Tito.
— Meu filho era o mais doentinho. Eu sempre falei pra ele: Tito, meu filho, você não vai dar pra enxada não. Vai ter que estudar. Porque a vida sem estudo é muito difícil. Veja eu, que fui distraída e deixei o tempo de estudar passar.
Distraída.
Ela chamou de distração ter ido para a roça aos sete anos de idade. Ter trabalhado a vida inteira. Ter sido faxineira para alimentar cinco bocas. Chamou de distração o que foi roubo.
Roubo de infância. Roubo de escola. Roubo de futuro.
Mas Tito ela salvou. O menino doente virou professor. E um dia trouxe para a mãe uma
bolacha boa.
— Ele me disse: "Mãe, hoje eu posso comprar uma bolacha boa. E quero estudar até os meus cinquenta".
A bolacha boa.
Esse símbolo pequeno, doméstico, imenso. A bolacha que antes tinha que durar para cinco.
A bolacha que era promessa de que um dia haveria fartura. A bolacha que agora é prova de que o filho venceu, de que a mãe venceu, de que o amor vence.
Quando ela me contou da bolacha, os olhos brilharam. Ali estava tudo. A vitória não é de quem chega no topo. A vitória é da bolacha boa comprada com dignidade. É do filho que quer estudar até os cinquenta anos lembrando da mãe que não pôde estudar aos sete.
Enquanto ela falava, eu pensava:
Quantas Marias batem nas portas de vidro deste país? Quantas mulheres negras, arrancadas de suas terras, encontram nas cidades não o futuro mas a humilhação? Quantas têm a cor transformada em culpa, o cheiro em crime, a existência em incômodo?
Quantas ouvem do pastor na televisão que seu tempo está acabando? Quantas saem depois da última humilhação - sempre tem uma última que antecede a saída? Quantas pedem força a Deus porque dos homens não vem justiça?
Mas penso também na terra vermelha. No rio que encontra rio. No peixe. No pimentão.
No filho professor. Na bolacha boa. Na fé ajoelhada às três da manhã. Na teimosia de
quem resiste.
Porque Maria - Tereza, Isolda, Rosalina, todas elas - não escolheu a cor que nasceu. Mas
escolhe, madrugada após madrugada, levantar, banhar-se, lutar, amar, não desistir.
E quando o Natal chegar, ela voltará. Pisará novamente a terra que a reconhece. Verá o
pimentão na estufa. Pertencerá. Porque pertencer é direito. Porque terra é mãe. Porque roça é origem.
Ninguém deveria ter que apagar os próprios passos para existir.
Ninguém deveria ter que negociar com Deus, de joelhos, às três da manhã, o direito de não sofrer.
Mas enquanto houver quem bata no vidro como quem pede socorro, estaremos aqui.
Ouvindo. Testemunhando. Escrevendo.
Para que a história dela - e de tantas - não se perca no silêncio que querem impor.
Texto inspirado em história verídica. Dados modificados para preservar o sigilo profissional.








Cintia, que texto importante e real. Você abordou com profundidade o racismo e o preconceito endêmicos na nossa sociedade. Um texto belo e sofrido.