"Okum D'orin: a poesia que vem do mar" – um mergulho na ancestralidade e na luta pela tolerância religiosa
- Tânia d'Arc
- 25 de jul.
- 6 min de leitura
Atualizado: 28 de jul.

O racismo religioso no Brasil é um fenômeno profundamente enraizado na história do país, manifestando-se principalmente contra as religiões de matriz africana, como o candomblé e a umbanda. Essas religiões, trazidas ao Brasil pelos escravizados africanos, foram historicamente marginalizadas e perseguidas, e ainda hoje enfrentam discriminação e violência.
Um estudo realizado pela Unifesp em escolas públicas de São Paulo revelou que 60% dos alunos que praticam religiões de matriz africana já sofreram algum tipo de discriminação no ambiente escolar. Os relatos incluem bullying, piadas ofensivas e até mesmo a proibição de usar símbolos religiosos, como colares de contas (guias).
A Renafro, Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, mapeou casos de violência contra terreiros em todo o país entre 2015 e 2020. O levantamento identificou mais de 200 casos de ataques, incluindo incêndios, depredações e ameaças. A maioria desses casos ocorreu em áreas urbanas, onde há maior concentração de terreiros. A Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), com sede no Rio de Janeiro, publicou relatórios que mostram um aumento nos casos de violência contra terreiros de candomblé e umbanda. Entre 2019 e 2021, houve um crescimento de 30% nos ataques a esses espaços religiosos, incluindo incêndios criminosos, depredações e ameaças a líderes religiosos.
Em um Brasil marcado por desigualdades sociais e culturais, onde a intolerância religiosa e o racismo estrutural se entrelaçam de forma perversa, a obra Okum D'orin: a poesia que vem do mar, de Martha Sales, emerge como um farol de resistência e sensibilidade. Publicado em um momento de crescente polarização e violência simbólica contra as religiões de matriz africana, o livro transcende a mera expressão artística para se tornar um manifesto político, espiritual e literário. Através de uma prosa poética que bebe das águas sagradas de Yemanjá, Martha Sales nos convida a refletir sobre a importância da diversidade religiosa, da ancestralidade e do combate ao racismo.
A obra, ilustrada com aquarelas de Roniery, é um convite à imersão em um universo onde a poesia e a espiritualidade se fundem, criando um diálogo profundo entre o sagrado e o cotidiano. Mas, mais do que isso, Okum D'orin é um chamado à ação, um grito de alerta contra a intolerância que assola o país. Dados da startup JusRacial, de 2023, revelam que um terço dos casos de racismo no Brasil está diretamente ligado à intolerância religiosa, com as religiões de matriz africana sendo as mais afetadas. Nesse contexto, a obra de Martha Sales ganha contornos urgentes, tornando-se uma ferramenta essencial para a educação e a conscientização.
A poesia como resistência: oralitura e ancestralidade
Martha Sales, iyalorixá e professora de sociologia, constrói sua obra a partir de uma perspectiva única, que ela mesma define como "orixalitura" ou "oralitura". Em entrevista, a autora explica que a poesia nasce da oralidade, da tradição ancestral que é transmitida de geração em geração. "Eu pego essa oralidade e a transcrevo de forma poética", diz Martha. Essa transição entre o oral e o escrito não é apenas uma escolha estética, mas um ato político. Ao resgatar a voz de Yemanjá e de outras entidades sagradas, a autora reafirma a importância das narrativas afro-brasileiras, muitas vezes marginalizadas ou apagadas pela cultura hegemônica.
A poesia de Martha Sales é, portanto, um ato de insurgência. Ela surge de suas vivências à beira do rio e do mar, em Sergipe, onde a autora encontra inspiração nas águas que simbolizam a força e a fluidez de Yemanjá. "A obra nasce dessas minhas vivências e experiências, vivendo e sendo uma mulher dedicada às águas, ao orixá Yemanjá", relata. Esse mergulho no sagrado não é apenas pessoal, mas coletivo. Ao compartilhar suas poesias, Martha Sales convida o leitor a se conectar com suas próprias raízes e a reconhecer a diversidade como um valor fundamental.
Educação como ferramenta de transformação
Um dos aspectos mais impactantes de Okum D'orin é sua aplicação no ambiente escolar. Martha Sales tem levado sua obra para escolas de Sergipe, realizando palestras, debates e oficinas que promovem a tolerância religiosa e o combate ao racismo. "As escolas onde eu cheguei com a obra são escolas que já tinham feito um trabalho de inclusão e combate ao racismo", explica a autora. No entanto, mesmo nesses espaços, ainda há resistências. "O ambiente escolar não é muito favorável para alunos que são parte das religiões de matriz africana", afirma.
O Disque 100, canal do governo federal para denúncias de violações de direitos humanos, registrou um aumento significativo nos casos de intolerância religiosa nos últimos anos. Em 2022, foram registradas mais de 500 denúncias relacionadas à intolerância religiosa, sendo a maioria delas direcionada a praticantes de religiões de matriz africana. Esses números, no entanto, são subnotificados, já que muitas vítimas não denunciam por medo de retaliação ou descrença no sistema.
Apesar dos desafios, os resultados têm sido promissores. Alunos e professores relatam mudanças significativas no comportamento e na percepção das diferenças religiosas. "Muitos alunos me procuraram depois desses momentos na escola para continuar fazendo seus questionamentos, desmistificando muitas coisas que estavam ali no imaginário deles", conta Martha. A obra também tem incentivado a expressão artística, despertando nos jovens o interesse pela poesia, pela pintura e pelo desenho. "A poesia e a obra apresentam essas linguagens conversando para falar desse lugar de pertencimento", reflete a autora.
O desafio de ampliar o diálogo
Apesar dos avanços, Martha Sales reconhece que ainda há um longo caminho a percorrer. "Ainda vivemos uma educação baseada na catequese e na ideologia cristã muito forte", observa. Essa realidade se reflete na dificuldade de levar sua obra para outras regiões do país, especialmente em escolas públicas. "Ainda há dificuldade principalmente nas escolas públicas para fazer o livro chegar, ainda mais que é uma produção independente", diz.
No entanto, a autora mantém a esperança. "Acredito que minha obra ainda precisa percorrer muitos caminhos para que isso possa ser ampliado no espaço escolar", afirma. Para ela, a chave está em desconstruir o imaginário negativo sobre as religiões de matriz africana e em promover um diálogo aberto e respeitoso. "O Brasil é um país racista, e esses espaços são espaços racistas. A educação e o ambiente escolar não são diferentes disso", alerta.
Um futuro possível: celebrando a diversidade
Okum D'orin: a poesia que vem do mar é mais do que um livro; é um movimento. Por meio de sua poesia, Martha Sales nos convida a repensar nossas próprias crenças e preconceitos, a celebrar a diversidade e a reconhecer a força da ancestralidade. Em um momento em que a intolerância religiosa e o racismo parecem ganhar força, a obra surge como um lembrete poderoso de que a arte e a educação podem ser instrumentos de transformação social.
Que a poesia de Martha Sales continue a ecoar, não apenas nas escolas de Sergipe, mas em todo o Brasil. Que ela inspire outros artistas, educadores e cidadãos a se unirem na luta por um futuro no qual a diversidade religiosa e cultural seja celebrada e respeitada. Como a própria autora diz, "a ancestralidade é uma grande ferramenta para trabalhar o respeito à diversidade". E é nessa ancestralidade que encontramos a força para seguir adiante, rumo a um mundo mais justo e acolhedor.

Alguns poemas da obra
Terra
Atotô!
Onde o sagrado habita
Onde o sagrado abriga
Onde o medo se esvai
Onde o sentido vagueia
Onde a palavra é reza
Onde o silêncio é lei
Onde a terra acolhe
A flor que cai
O joelho que dobra
E toda súplica
Atotô
Zingando
Sem medo
Atravessemos
E abandonemos
Nossas próprias margens
Pra saber o que existe
Do lado de lá
Só assim
Zingando nessas águas
Destino que se desenha
Aos olhos da proa
Ao sabor do vento
Que assobia
Que dá direção
E sem medo
Atravessemos
Em segredo
Uterinas tuas águas
Sal da vida
Me dão vida
Libertadoras tuas correntes
Marítimas
Me dão ar
Caudalozas correntezas
Me dão pés
Pra caminhar
Fio de lua
Crescente
Me dá a direção
Espelho d'água
Reflexo
Me dá a visão
Profundos teus mistérios
Em segredo
Me guardam
Ventre acolhedor
Partindo filhos
Do meu destino
Me dá a certeza
Ficha técnica do livro
Título: Okum D’orin: a poesia que vem do mar
Autora: Martha Sales
Gênero: Literatura sergipana; poesia
Páginas: 69
ISBN: 978-65-5730-152-4
Editora: Infographics
Ano: 2022
Preço: R$ 39,90
Onde encontrar: na Amazon ou diretamente com a autora.
Sobre a autora
Martha Sales é iyalorixá e professora licenciada em Sociologia pela Universidade Federal de Sergipe. Especialista em Antropologia pela UFS/NPPGA, também é pós-graduanda em cinema e linguagem audiovisual. É membro do Núcleo de Pesquisa e Estudos Afro-brasileiros e Indígenas, membro e sócio-fundadora da Omolàiyé, sociedade de estudos étnicos, políticos, sociais e culturais. Sócio-fundadora e coordenadora da Casa de Mar, espaço de arte, cultura e educação.
Para conhecer mais sobre a autora e seu trabalho, acesse: https://www.instagram.com/martha_sales/
Conteúdo produzido por Tamyris Torres.
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