
Hoje vai ter um baile e quero dançar. Meus pés enfiados em botinhas pretas me
chamam. Meus olhos escuros no espelho me chamam. Eu tenho um espelho grande em que verifico todos os detalhes da imagem refletida. A saia escura que chega até as ponta das botas. As mangas da blusa clara que chegam até os pulsos e os apertam. As franjas do xale negro que chegam até os quadris. Mas o colo está livre. Livres clavículas, veias, artérias.
Um baile em um galpão de madeira. É agora. Foguinhos ligados a um fio preto no teto
derramam a luz amarela. O piano velho e desafinado toca a valsinha antiga: “um-dois-
três, um-dois-três, um-dois-três...” Valsinha desenxabida e querida. Não gostei do barulho que minhas botas fizeram ao entrar no galpão. Toc, toc, toc no chão de madeira empoeirado. Todo mundo pode ouvir meus. Toc, toc, toc. Está todo mundo olhando para mim? Reprimo o esgar de minha boca. Finjo. Cumprimento um, sorrio para outra. Boa noite, boa noite. Podem olhar, irmãos, irmãs, não vão encontrar.
Levei a vida aperfeiçoando esta pessoa reta, este porte modesto (mas, quero crer,
altivo), os cabelos domados, o queixo baixo, o olhar médio, o quase sorriso, o andar
contido, as mãos juntas. Hoje me dei o prazer de uma gola aberta, mas não faz mal, é
noite de baile. Boa noite, boa noite. Toc, toc, toc.
Atravesso o galpão e me sento em um banco duro e comprido de sarrafo junto à parede
de madeira. Mas não me encosto, mantenho as costas empertigadas. Paredes de galpões de madeira, com aquele cheiro e o pó, sob aquela luz mortiça, Deus me livre de bichos que correm por essas paredes de madeira, pelos chãos do mundo, Deus me livre de me acharem, se enroscarem em meus cabelos, em meu xale, em meu pescoço, nessa minha vida.
Um burburinho na entrada anuncia a chegada de um grupo diferente. Homens. Olho
assim, quase desinteressada. Homens sempre os mesmos. No começo, podem significar uma porção de coisas e, no fim, não significam nada. Mas para dançar uma valsa, quero um homem e me ponho a observar. E estou observando quando, do meio daquele grupo que se espalha entre os casais que dançam, enquanto estou sentada ali sozinha no banco de madeira, uma figura se destaca e se aproxima. Uma figura de homem. Um homem que é ele. Meus olhos pasmados o percorrem. Veste um uniforme militar verde-oliva, novo e condecorado, botas altas e escuras. Carrega um quepe sob um dos braços dobrados e traz o sorriso mais aberto, como se nos tivéssemos visto ontem e nas melhores relações.
Ele se inclina, coloca o quepe sobre o banco e me estende a mão, um convite de silêncio
no olhar e no sorriso. Todos os presentes, sem parar de fazer o que estão fazendo e ao
mesmo tempo, voltam a cabeça para olhar em nossa direção. Então, por um segundo
tudo para – só por um segundo –, até a valsa. Com um sobressalto, penso que é evidente que não vou aceitar, não vou segurar aquela mão estendida, não vou me erguer daquele banco. Não vou me comportar como se nos tivéssemos visto ontem e nas melhores relações. Valsar com ele, não.
Só que vejo meu braço se mover e as pontas dos meus dedos tocarem as pontas dos
dedos dele. Levanto para dançar. E noto que meus lábios se abrem em um sorriso.
Formamos um par e saímos rodando. Um-dois-três, um-dois-três, um-dois-três...
Quantos olhos nos acompanham, como insetos, no mesmo ritmo, um julgamento atrás
de cada olhar? Seguem nossos movimentos, nossos olhos, nossos lábios. Ainda
sorrindo, ele os ignora, finge ignorar. E finge ignorar que eu não o amo mais.
Este homem dançando comigo está vivo. A mão que tomou a minha mão é quente; é
firme o braço que me enlaçou e me conduz. É nesse enlace que duvido de que meu amor tenha acabado. O amor dele, sei que houve nunca. E, na valsa, os olhos dele brilham como se houvesse. Luzes de Natal. O sorriso dele brilha. E o rosto dele, tão perto do meu, me ofusca.
Vamos às voltas, eu não preciso fazer nada, mal posso tomar fôlego. Em momentos,
meus pés saem do chão. Um-dois-três, um-dois-três... Roda, roda, roda, roda... Ele
murmura. O que ele está dizendo? O que você está dizendo? O quê?
Rodamos. Meu xale negro desliza das minhas costas para o chão. Meus cabelos se
desprendem e voam pelas minhas costas, batem no meu rosto, roçam o rosto dele.
Rimos. Ele fala, mas o que ele diz, meu Deus? Rodamos um-dois-três, um-dois-três...
Ele ri, eu rio. De repente, ele me beija. Roda. Ele me quer. Um-dois-três... Eu vou.
Dá-me por garantida. Presa, caçada pronta. Sou eu?
Viro meu rosto de um lado a outro na valsa-roda-caçada para evitar ou encontrar o dele,
afogueado, os olhos dele brilhantes, os lábios dele úmidos, seus dentes, sua língua, seu
hálito em minha boca, meu colo, meu pescoço... Ainda dançamos? É isso que estamos
fazendo? Um-dois... Algo assim, no meio do baile? Do galpão? A nossa volta todos os
amigos, inimigos...
Ele enlouqueceu? Preciso fugir? Não quero. Quero ceder, mas isso não pode. Quero
ceder a isso que talvez não seja fome, mas gula. Quero ceder aqui mesmo, neste salão
em que todos os olhos-insetos nos queimam, os ouvidos ouvem e as bocas calam.
Não pode. Me debato, empurro, grito. Em vão, ele não para. Ninguém faz nada. Não
veem?
Se ninguém faz nada, se ele não para, a louca sou eu, não ele. Deliro que estou me
debatendo e gritando, que ele é um animal que fareja, pula, lambe, arranha, morde e rasga minha carne. Sou louca, estamos apenas dançando. Nada mais. Uma valsa antiga. Um. Dois. Três. Eu me debato, viro-lhe costas e o abraço dele se desfaz. Caio de joelhos no chão de madeira. Respiro profunda e rapidamente, as palmas das mãos no chão sujo, os joelhos doem de encontro à dureza. A poeira que sobe do chão me sufoca. Espero que ele me ajude a levantar, mas ele não desce àquele chão. Não sinto suas mãos em meus ombros, não sinto sua respiração. Não o escuto. Os casais continuam dançando ao meu redor.
Ninguém vem. Estou de joelhos no meio de um salão de baile. Volto-me devagar. Onde ele está? Onde ele foi? Ainda de joelhos, rodo a cabeça para olhar em todas as direções. Pessoas dançando a valsa velha. Ninguém vem em meu auxílio. Devagar, ofegando, eu me levanto com a ajuda das minhas mãos no chão sujo de madeira. Limpo as mãos na saia como posso. Recolho meus cabelos espalhados como posso, junto meu xale pisoteado e sujo, busco dar um aspecto mais decente a minha figura. Em pé, procuro. Onde ele está? Desvio dos casais e procuro. Nenhum olhar encontra o meu.
Então novamente um sobressalto. Vejo uma figura que me aterroriza. Não dança, não
está nem em pé. Em um dos cantos do galpão, sentada em um banco comprido de
sarrafo encostado à parede, ela observa os casais que dançam. De saia escura e longa,
blusa clara, de mangas compridas, a mulher aperta um xale negro fortemente contra o
pescoço escondendo o colo, clavículas, veias e artérias. As costas estão bem
empertigadas, para não encostar na parede e correr o risco de que algum bicho se
enrosque em seus cabelos. Os pés em botinhas se movem um pouco no chão
empoeirado de madeira, como se valsasse, um-dois-três, um-dois-três enquanto sonha
com visitas de amores mortos e desejos velhos.
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